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domingo, 13 de dezembro de 2009

Mega-inundações

Nos últimos anos tem aparecido na literatura uma grande variedade de trabalhos sobre mega-inundações não só na Terra como em outros planetas como Marte. No exemplar de 10/12/2009, da Nature saiu um trabalho sobre a inundação catastrófica do Mediterrâneo após o Messiniano. Como é sabido, o Mar Mediterrâneo evaporou ao final do Mioceno (5,6 milhões de anos atrás) devido ao fechamento do precursor do Estreito de Gibraltar. Kenneth Hsu escreveu um pequeno e interessante livro a respeito, que li faz uns vinte anos atrás. 

Alguns consideram este livro como sendo um dos mais influentes e significativos livros de ciência do século 20.
A re-inundação do Mediterrâneo, no Zancleano (5, 3 milhões de anos atrás - início do Plioceno) pelas águas do Oceano Atlântico foi um evento catástrófico, descrito no trabalho recente de Garcia-Castellanos e colaboradores. Segundo eles no inicio da inundação a descarga através do Estreito de Gibraltar era 3 ordens de magnitude daquela do Rio Amazonas hoje, alcançando velocidades de até 40m/s (140km/h). As taxas de incisão foram maiores que 0,4m por dia. 90% do volume de água que preenche o Mediterrâneo teria sido transferido em um intervalo de tempo que durou de alguns poucos meses até 2 anos. As taxas de subida do nível do mar foram da ordem de mais de 10m/dia. 500 km cúbicos de rocha foram erodidas no Estreito de Gibraltar durante este evento.

O Mar Mediterrâneo e o estreito de Gibraltar

Estreito de Gibraltar - Batimetria de Detalhe. Fonte: Ifremer


O período Quaternário foi pródigo em mega-inundações, durante a transição dos períodos glaciais-interglaciais. Algumas das mais famosas e catastróficas foram a do Lago Missoula (a mais controversa) e a do Canal da Mancha (English Channel), talvez a mais divulgada nestes tempos de internet.


Lago Missoula e as "Channeled Scablands" - por volta de 15.000 anos atrás as geleira canadenses avançaram para o sul e represaram o rio Clarke Fork criando o Lago Missoula, que alcançou uma área de 7.500 km2 e uma elevação de cerca de 1.295m . O volume total de água armazenada atingiu cerca de 2200km cúbicos.

Reconstrução paleogeográfica da extensão dos lençois de gelo, do lago Missoula e da área afeta pela mega-inundação (Fonte: http://nwcreation.net/articles/missoulaflood.htm). Veja também, figura abaixo para legenda



Paleo-linhas de costa do lago Missoula. Fonte: http://earthweb.ess.washington.edu/EPIC/Geologic/Missoula/index.htm


Quando esta represa de gelo se rompeu o lago Missoula foi rapidamente esvaziado. As velocidades de escoamento alcançaram até 100km/hr e as descargas atingiram até 17 milhões de metros cúbicos por segundo (para fins de comparação a descarga média do Amazonas é 200 mil metros cúbicos por segundo. Esta mega-inundação escavou canais com quase 200 metros de profundidade e até 30km de largura, ainda hoje preservados na região chamada de Channeled Scablands  Marcas de corrente (" ripples") gigantescas constituidas de cascalho, com altura e comprimento de onda médios de 4 m  e 82 m respectivamente se formaram. Do mesmo modo canyons e cachoeiras (como a "Dry Falls" ) se desenvolveram rapidamente.




Foto aérea mostrando ondulações ("ripples") de cascalho formadas durante a inundação. Fonte: http://geology.mines.edu/faculty/Klee/Missoula.html

Foto de campo das marcas de ondulação de cascalho. Fonte: http://geology.mines.edu/faculty/Klee/Missoula.html

Foto de campo das marcas de ondulação de cascalho (reparem na estrada para escala). Fonte: http://earthweb.ess.washington.edu/EPIC/Geologic/Missoula/index.htm

Dry Falls - a maior cachoeira seca do mundo (117 m de altura), esculpida durante a inundação. Fonte: http://geology.mines.edu/faculty/Klee/Missoula.html


Canal da Mancha - este canal separa a Inglaterra da França e teria sido escavado por duas mega-inundações catastróficas resultantes do esvaziamento de lagos glaciais na área onde hoje é o sul do Mar do Norte. Esta descoberta resultou de levantamentos sonográficos multifeixe que permitiram uma visualização detalhada do fundo marinho. Gupta et al (2007) encontraram nestes registros batimétricos  feições indicativas de eventos de inundação catastróficas. O Canal da Mancha começou a se formar por volta de 450.000 anos atrás durante a primeira grande extensão dos lençois de gelo pela Europa Central (veja figura abaixo). Esta expansão bloqueou os rios que desaguavam no Mar do Norte, originando um lago glacial represado por uma pequena faixa de terra ligando a Inglaterra e a França (o estreito de Dover). 

Lago glacial formado na porção sul do Mar do Norte por volta de 450.000 anos atrás (Fonte: Gibbard 2007)


Quando esta barreira foi ultrapassada o lago começou a transbordar e o fluxo tornou-se rapidamente torrencial escavando o canal da Mancha. Este processo se repetiu 200.000 anos mais tarde. 

O paleo-rio da Mancha durante o último máximo glacial (20.000 anos atrás). Este paleo-rio se formou após dois episódios de mega-inundação. (Fonte: Gibbard 2007)

Canais do antigo rio da Mancha (em cinza) mapeados com batimetria multi-feixe. (Fonte: Gupta et al. 2007)

Detalhe do retângulo da figura anterior, mostrando a batimetria do fundo do canal da Mancha, com as feições fluviais mapeadas (Fonte: Gupta et al. 2007)


Reconstrução artística do paleo-rio da Mancha durante a mega-inundação. Ao fundo as famosas falésias brancas de Dover (Fonte: http://www.qpg.geog.cam.ac.uk/research/projects/englishchannelfloods/
Assim, durante periodos de nivel de mar baixo o rio da Mancha,  direcionou mais da metade das descargas fluviais da Europa Ocidental diretamente para o Oceano Atlântico. Estas mudanças na paleogrografia tiveram importantes conseqüências nas migrações humanas e animais, resultando no empobrecimento da biota britânica durante periodos de nivel de mar alto, como hoje. Abaixo vocês podem assistir a palestra de Philip Gibbard: How Britain became and island






E nós aqui no Brasil? O Brasil encontra-se distantes dos lençóis de gelo, portanto nada de lagos glaciais represados para serem rompidos e gerarem mega-inundações. Entretando, nós também experimentamos os efeitos da mega-inundação da passagem do Pleistoceno para o Holoceno, resultante do derretimento dos lençóis de gelo e que num intervalo de tempo de pouco mais de 10.000 anos resultou na elevação do nivel do mar em cerca de 120m, inundando as plataformas continentais de todo o mundo, com taxas que em alguns periodos ultrapassaram 2m/século. 


Ainda não temos as facilidades para realizar levantamentos batimétricos multi-feixe e temos que contar com as cartas batimétricas da Marinha do Brasil. A imagem abaixo, mostra o fundo atual da Baia de Todos os Santos e foi gerada a partir destes dados batimétricos.  Mostra a paleogeografia aproximada desta região durante o Último Máximo Glacial (20.000 anos atrás) (veja também esta postagem). É o nosso paleo-rio Paraguaçu. Estamos agora estudando a história da mega-inundação holocênica do rio Paraguaçu que resultou na formação da Baía de Todos os Santos. Muito em breve teremos alguns dados novos para mostrar.



Paleogeografia da Baía de Todos os Santos durante o Último Máximo Glacial (Dominguez & Bittencourt 2009. Use este link para download da cópia do trabalho)


Alguns links de interesse:
http://iceagefloods.blogspot.com/
http://geology.mines.edu/faculty/Klee/Missoula.html
http://scienceblogs.com/highlyallochthonous/2009/06/the_lake_missoula_megafloods.php
http://www.pbs.org/wgbh/nova/megaflood/fantastic.html
http://www.qpg.geog.cam.ac.uk/research/projects/englishchannelfloods/

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