Andei meio fora do ar uns tempos em grande parte por causa da cruel burocracia que regulamenta o uso do dinheiro público nas atividades de pesquisa no país. Como a quase totalidade dos recursos para pesquisa é sob a forma de dinheiro público, todo mundo vem experimentando de uma maneira ou de outra o peso crescente desta burocracia no dia a dia da pesquisa, principalmente aqueles recursos administrados diretamente pelas universidades ou suas fundações. O fato é que a situação está beirando à quase completa estagnação.
Na wikipedia a origem da palavra é descrita da seguinte maneira: "O termo latino burrus, usado para indicar uma cor escura e triste, teria dado origem à palavra francesa bure, usada para designar um tipo de tecido posto sobre as escrivaninhas das repartições públicas. Daí a derivação da palavra bureau, primeiro para definir as mesas cobertas por este tecido e, posteriormente, para designar todo o escritório". A burocracia é de fato esta cor escura e triste que nos últimos anos foi progressivamente se entranhando e ocupando espaços cada vez maiores no nosso dia a dia da pesquisa, esmagando, sufocando o entusiasmo.
Onde o importante é se cumprir o ritual de procedimentos e onde os resultados não tem praticamente importância. Um mundo kafkeano, onde um absurdo se sucede ao outro. Vou para o campo, preciso de gelo para preservar as amostras: "...só com três cotações, mas não se preocupe não professor que eu já trabalhei num setor que fazia cotação de gelo". Se acabar uma bateria para um GPS, se precisar de uma corda, se precisar realizar uma solda em um aparelho que quebrou. Tudo isto só com três cotações. E não adianta gastar do seu bolso, pois o ressarcimento de despesas está proibido. Nem pode tirar adiantamento, pois também está proibido. Alias, tudo está proibido. A não ser é claro que se ache um jeitinho, que fulano autorize, ou sicrano dê um parecer ou beltrano justifique.
Modificado da capa do livro de James Hawes: Why You Should Read Kafka Before You Waste Your Life
Comprar um cartucho para impressora ou um anti-virus é um procedimento que gera algumas dezenas de folhas e pelo menos 03 a 06 meses. Fui fazer um trabalho de campo em abril e só recebi as diárias no dia 30 de dezembro. Minha aluna de doutorado que ousou defender sua tese em janeiro, pagou a passagem, a hospedagem e a comida dos membros da banca com seus recursos. Não existe argumentação, não existe racionalidade, nem economia de recursos com estes procedimentos. Na realidade ocorre desperdicio do recurso publico, se contabilizarmos os custos administrativos, as horas perdidas mas acima de tudo a brutal perda de eficiência no uso dos recursos. Existe sim é a satisfação neurótica do funcionário, em apontar que está faltando uma vírgula no formulário e que por isto, tudo terá que ser refeito: "Não tem problema não professor, o Sr. preenche de novo o formulário, re-envia e com 15 dias está tudo resolvido, ah! e pode entregar direto no protocolo!".
Trabalhar com pesquisa, como em Geologia Marinha, não é a mesma coisa que comprar uma frota de carros ou um lote de papel higiênico. É impossível se fazer qualquer trabalho no mar nas condições impostas pela Lei 8666.
Tudo isto decorre da famigerada lei das licitações, a famosa Lei 8666 (link) e suas aparentadas. Protestos existem vários, a toda a hora na televisão, nos jornais, nas revistas, do Presidente, do Governador, do Reitor. A Lei porém ganhou uma vida própria e eu tive oportunidade de testemunhar a transformação lenta, mas segura, de pessoas que eram contra, e pouco a pouco foram se contaminando pela Lei 8666 e hoje estão irremediavelmente infectadas. É por isto que ela sobrevive, já tem muita gente contaminada neste nosso país que adora cartórios.
P.S.: não se preocupem que isto não vai virar uma série, não estou contaminado.